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O mealhadense que desfilou sozinho pela liberdade


tags: Mealhada, Luso Categorias: Região quarta, 29 abril 2020

Foi a imagem mais marcante deste 25 de abril de 2020. Um homem, segurando a bandeira de Portugal e vestido de empregado de mesa, percorreu sozinho a Avenida da Liberdade, num período de isolamento social, em que foi recomendado que as pessoas ficassem em casa. No entanto, o chamamento do “Grândola, Vila Morena” foi forte de mais para o homem, que decidiu homenagear a data sozinho. O que não se disse nesse dia é que o homem, chamado Carlos Ferreira, nasceu há 71 anos no Hospital da Mealhada e que ainda hoje tem familiares no Luso. E que o percurso sozinho com a bandeira é só uma das (muitas) aventuras por que passou na vida. O Jornal da Mealhada falou com este contador de histórias e conversador nato sobre o dia que o tornou conhecido, onde estava no 25 de abril de 1974 (bem perto do centro da ação, como se lerá mais abaixo), o drama familiar que está a atravessar e a corrida que fez, de Lisboa até Viseu, com uma bandeja na mão, em que teve uma passagem pela sua Mealhada natal.

Como já foi escrito acima, Carlos Alberto Ferreira nasceu a 12 de setembro de 1948 no Hospital da Mealhada, onde atualmente se encontra o Hospital da Misericórdia. Sem conhecer o pai, viveu até aos cinco anos na Mealhada, tendo sido criado com o primo Armando, que vive atualmente no Luso. Depois, andou por casas de acolhimento do Padre Américo, tendo a mãe ido para Coimbra. Nos lares de acolhimento andou por vários pontos do país, entre Braga, Santa Maria da Feira e a Praia de Mira.

Em 1966, com 18 anos, rumou a Lisboa, à procura de uma vida melhor. “Apanhei o comboio na Pampilhosa, nunca mais me esqueço”, conta. Chegado a Lisboa, ofereceu-se para trabalhar na Pensão Monumental, que atualmente ainda existe, nos Restauradores. “Dormia nas camaratas, tinha onde comer e ajudava as empregadas a arrumar os quartos”, descreve, salientando que ia correndo bem e, aos poucos, foi arranjando pessoas amigas. Da Pensão Monumental rumou ao Hotel Tivoli, na Avenida da Liberdade, onde esteve mais de 30 anos. Pelo meio, esteve em serviço militar, onde viveu de muito perto o dia da revolução.

 

Lado a lado com Salgueiro Maia

Carlos Ferreira conta o seu 25 de abril de 1974 começando pelo dia 24. Estava no quartel em Santarém pelas 22h15, deitado na caserna com os restantes companheiros. “O meu furriel entrou e chamou-nos para a parada. Não liguei muito, porque às vezes tínhamos instrução noturna. Chovia bem, mas aguentei”, recorda. Entretanto surgiu Salgueiro Maia, que comunicou que a parada ia ser diferente. Carlos Ferreira contou que lhe foi comunicado que seria um golpe de estado e que iriam todos até Lisboa, tendo Salgueiro Maia perguntado quem se juntaria a ele. “Muitas vezes nas paradas dizíamos isso, só acreditei quando seguimos”, aponta. Eram quatro horas da madrugada quando o pelotão de Santarém já estava bem plantado no Terreiro do Paço.

 

Recordar a data

Desde aí, Carlos Ferreira desfila todos os anos na Avenida da Liberdade no 25 de abril. Este ano, e pela primeira vez, o desfile não aconteceu, mas este não se deixou ficar. “Todos os anos visto-me de empregado de mesa e levo a bandeira aos ombros. Saí do Rossio e fui por aí acima”, garante, assegurando que nada o iria parar. Salienta o apoio e a forma cordial como as autoridades o abordaram, mas Carlos Ferreira quis homenagear a data como devia ser. Na entrevista que concedeu à Rádio Observador, recordou um momento marcante na caminhada. “Ouvi o ‘Grândola, Vila Morena’ e foi como se a minha alma tivesse ressuscitado”, assegura.

O homem assegura que a caminhada que fez sozinho foi um momento emocionante. “Chorei e emocionei-me muito ao longo do caminho”, destaca. Para Carlos Ferreira, a data este ano ganha um simbolismo ainda maior, devido à pandemia e à forma como as pessoas estão a reagir ao vírus. “É importante que as pessoas abram os olhos e saibam dar valor ao que é a humanidade e a liberdade, até porque muitas forças que o deviam ter feito não o fizeram”, critica.

O momento chamou a atenção das pessoas que estavam pelas casas e da comunicação social, que se quis interessar pela história de Carlos. José Sena Goulão, da Agência Lusa, fotografou o momento, e logo o percurso de Carlos Ferreira se tornou viral. No dia em que falou com o Jornal da Mealhada, o homem, reformado do setor hoteleiro, tinha acabado de dar uma entrevista ao Expresso. “Até me fizeram vestir a farda de militar e tudo. Aos anos que não o fazia”, revela.

 

Drama familiar

Para além de não haver o habitual desfile do 25 de abril pela Avenida da Liberdade, Carlos Ferreira deparava-se com outro drama, bem mais grave. A mulher, com quem está casado há mais de 40 anos, está internada em Ourém, com doença de Alzheimer, e Carlos não a pode ir visitar. “Era a minha grande tristeza nesse dia”, afirma. A mulher foi internada uma semana antes de ser decretado o estado de emergência pelo Governo, o que o tem impossibilitado de estar com ela. Agora Carlos não sabe quando poderá voltar a estar com a sua companheira de vida.

Devido a este drama, Carlos Ferreira estava sozinho em casa no dia em que se comemoravam os 46 anos da Revolução dos Cravos. Tem um filho, que vive em Madrid, que lhe vai contando os problemas que tem enfrentado na capital espanhola, onde a Covid-19 tem deixado um rasto de destruição.

 

A corrida de bandeja

Em 1984, Carlos Ferreira foi desafiado pela organização da Feira de São Mateus, em Viseu, a correr vestido de empregado de mesa desde Lisboa. Acedeu ao pedido e seguiu, tendo, em três dias, chegado à Mealhada. “Sabia que a minha terra seria uma das partes mais difíceis do percurso. Fui muito bem recebido, tendo passado para comer e descansar no Grande Hotel do Luso. Foi uma das minhas grandes aventuras”, lembra.

 

Voltar à Mealhada

O contacto que Carlos Ferreira vai tendo com a Mealhada natal é através do primo, que vive no Luso. “Diz-me que a Câmara Municipal não tem feito muito, mas agora com o vírus não tenho visitado”, conta. Recorda os bons almoços que costuma ter na Churrasqueira Rocha e as pessoas afáveis que encontra no Luso e que lhe telefonam de vez em quando. “Quando passar a pandemia, vou lá”, assegura.

 

FOTO: José Moura