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Fazer o papel de “pobres vítimas”


tags: Padre Rodolfo Leite Categorias: Opinião quarta, 08 julho 2020

1. Estes tempos de pandemia estão a atingir, de forma muito profunda, o viver de todos e de cada um. Para muitos, os sonhos da vida transformaram-se em pesadelos de preocupações, angústias e sofrimentos. A tristeza, o desânimo, o abatimento, a tensão e até dor começam a ser os condimentos do dia-a-dia imensa gente. Depois, é a incapacidade de perceber como dar volta, como superar, como ser resiliente, enfim, como se pode voltar a sonhar, a sorrir para o amanhã, a ter esperança.

Uns estão a ir abaixo e querem desistir, por causa do cansaço de tanta luta. É terrível quando dentro de uma pessoa ecoa a afirmação letal: “Não sou capaz de mais. Já não aguento. Desisto!”. Com efeito, o “cansaço da viver” não se resolve com a desistência de tudo, mas com o descanso de quem tem ou encontra sentido para a vida. Se não pararmos, se não recuperarmos o sentido e o significado do nosso viver, se não encontrarmos forças em nós próprios, se não tonificamos o nosso coração e a nossa consciência com o Amor que Deus nos tem, então jamais ultrapassaremos os problemas e não seremos capazes de conquistar a felicidade que ansiamos.

Outros estão a revoltar-se, gastando as suas vidas e energias a reclamar. São aquelas pessoas que se estão a tornar vítimas permanentes, algumas começando a sofrer mesmo de uma vitimização crónica. Sim! Aquelas pessoas que se disfarçam como falsas vítimas, consciente ou inconscientemente, para simular uma agressão inexistente e culpando os outros para se livrarem de qualquer responsabilidade.

 

2. Não se trata bem de uma doença, mas é um distúrbio paranoico onde a pessoa insiste em culpar continuamente os outros pelos males que lhe acontecem. A pessoa que frequentemente se vitimiza acaba por criar, em si, sentimentos muito negativos, como a raiva e o ressentimento, chegando mesmo a um estado de permanente agressividade. É que não se limita a reclamar, mas utiliza tudo para fazer ataques e acusações aos outros, tornando-se intolerante e sendo insuportável no trato.

Tais pessoas acreditam fortemente que a culpa pelo que acontece com elas é sempre dos outros. Tudo o que ocorre nas suas vidas não depende diretamente da sua própria vontade, mas de circunstâncias externas. Depois, exageram sempre nos aspetos negativos, desenvolvendo um pessimismo exacerbado que as leva a concentrarem-se apenas nas coisas negativas que acontecem, ignorando as positivas.

Estas pessoas acreditam que são vítimas dos outros e das circunstâncias, por isso não se sentem culpados ou responsáveis por nada que aconteça, com elas ou à sua volta. Muitas vezes, até encontram prazer no ato de reclamar, porque fazer o papel de “pobres vítimas” facilita a atenção dos outros. Estas pessoas não pedem explicitamente ajuda para resolver os seus problemas, apenas se lamentam dos seus infortúnios numa busca desenfreada de compaixão e compensação.

Pior é que as pessoas que assumem o papel de vítimas eternas, desenvolvem uma atitude suspeita, acreditando que os outros agem sempre de má fé, chegando a ter um desejo quase mórbido de descobrir queixas mesquinhas. Normalmente, sentem-se discriminadas ou maltratadas, acabando por desenvolverem uma hipersensibilidade e tornarem-se especialistas em criar “uma tempestade num copo de água”.

Como tudo é responsabilidade dos outros, estas pessoas não encontram motivos para aceitarem críticas construtivas ou muito menos fazerem uma análise aprofundada da sua consciência que os possa levar a uma mudança de atitude. No fundo, os erros e os defeitos dos outros são intoleráveis, enquanto os seus são simples subtilezas.

Uma das estratégias preferidas destas pessoas é a manipulação emocional. Quando conhecem muito bem o seu interlocutor, elas não hesitam em utilizar a chantagem emocional para que tudo jogue a seu favor e assumirem o papel de vítimas. Ao descobrirem o ponto fraco do outro que julgam adversário, elas exploram-no para criar empatia, acabando por envolve-lo na sua teia e levando-o a assumir o papel de carrasco, enquanto elas permanecem confortáveis no seu papel de vítimas e podem continuar a lamentar-se.

 

3. Tudo isto para dizer que todos têm o direito e a obrigação de se manifestarem, reclamarem e chorarem as dores da sua vida e os males do seu viver. Não podemos deixar de ouvir, com compaixão e bondade, os que sofrem, aliás, é uma obrigação sagrada a que não nos podemos dispensar. Mas, jamais podemos compactuar ou ficar reféns daqueles que, sabe-se lá porquê, vivem distorcendo a realidade, fugindo à responsabilidade, com uma doentia desculpabilização que os leva a atacar tudo e todos.

Vou apercebendo-me que a vitimização é um recurso cada vez mais frequente, quer na vida pessoal de muitos quer nas realidades familiares e nos âmbitos públicos e sociais. Basta estarmos atentos aos discursos e aos argumentos de tanta coisa que se faz e diz. Contudo, quem não é verdadeiro no seu viver, assumindo de forma humilde e responsável, as suas grandezas e misérias, jamais conseguirá alcançar a verdade de ser feliz.

 

P. Rodolfo Leite