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''É a festa da sensibilidade, do Amor, daquilo que de melhor existe no coração de cada pessoa e de toda a Humanidade''


tags: , Entrevista, Paz, Mealhada, Natal Categorias: Região, Entrevista sexta, 30 dezembro 2022

O que é o Natal?

O Natal é uma realidade muito simples. É uma festa de toda a humanidade que se identifica com um conjunto de perspetivas e de valores que são humanos e que são cristãos, são da ordem da fé. É este acontecimento extraordinário da presença de Deus no meio do seu povo, neste mundo que tem tantas alegrias e tantas perturbações. Portanto, é esta festa que nos move interiormente, que nos sensibiliza, que nos dá uma alegria enorme de viver, que faz renascer em nós a esperança, que nos faz olhar uns para os outros de uma forma diferente daquilo que fazemos no resto do ano e que procuraríamos que fosse contínuo o ano inteiro. É a festa da sensibilidade, do amor, daquilo que de melhor existe no coração de cada pessoa e de toda a humanidade.

E é isso mesmo que o Natal representa hoje em dia, não é?

Sem dúvida. Embora hajam hoje muitos desvios, muitas formas de ver, de pensar, mas mesmo algumas que parecem desviantes desta centralidade, do ponto de vista da fé e do ponto de vista cristão, procuram ir àquilo que é a centralidade da pessoa, dos sentimentos que ela alimenta, que ela nutre, daquilo que ela tem de melhor em si. E essa inspiração vem sempre no Natal de Cristo.

Quais os desafios do Natal em 2021 depois de quase dois anos em pandemia?

Felizmente nós estamos um pouco mais aliviados este ano, neste Natal, do que estivemos nos anteriores. Sentimo-nos um pouco mais soltos, mais desprendidos, sem aquelas amarras. Embora saibamos que as questões mais complexas não estão ultrapassadas, nem sobre o ponto de vista da pandemia, mas depois há tudo aquilo que é o caminho da humanidade e o caminho de cada país, de cada região, de cada pessoa e de cada instituição, nesse caso, ainda está muito por fazer e há situações de muita apreensão, como nós sabemos. Muitas delas são fruto, de facto, de uma pandemia. Outras não são fruto da pandemia, embora porventura agravadas por estas novas circunstâncias. Aquilo que mais me preocupa é ver uma grande parte da humanidade sem perspetivas de futuro, sem esperança, sem alegria de viver, porventura, noutros continentes até mais do que no nosso continente europeu, onde felizmente do ponto de vista económico-financeiro, apesar das dificuldades existentes e agravadas, enfim, se vão encontrando alguns caminhos, mas noutros continentes há de facto populações ainda a viver em situações que nós não conseguimos imaginar o que são. No século XXI e num planeta cheio de recursos e desenvolvimento tecnológico e científico e, a tantos níveis, ainda continuam a haver situações tão precárias, do ponto de vista da saúde, da alimentação, da cultura, da escola, entre outros.

E depois preocupa-me muito que mesmo nalguns países onde as pessoas vivem razoavelmente, do ponto de vista económico-financeiro e social, haja ainda pessoas com marcas interiores tão negativas e tão fortes que as não deixam de facto ser felizes. São muitas as motivações, isto do interior do coração, da inteligência, da consciência, dos sentimentos, do que se alimenta e do que se experimenta, traz as maiores potencialidades e possibilidades a cada pessoa e a cada família, mas também traz os maiores problemas. E há, na humanidade, gente a sofrer muito interiormente, sem capacidade de sair de algumas situações, em que nem sabe sequer como ali foi parar. E isso, de facto, foi uma preocupação. E aí também penso que as instituições e o tempo do Natal e, concretamente, a Igreja, tem um papel muito importante. Porque vai tocar, e pretende com a sua mensagem, tocar naquilo que mais intimamente torna as pessoas felizes ou infelizes, que tem a ver com o seu interior, com o seu coração e que, naturalmente, tem ramificações, causas e consequências também exteriores.

O que a pandemia está a obrigar a Igreja a mudar?

A pandemia, juntamente com muitas outras motivações, obriga a Igreja sobretudo a criar uma proximidade maior com as pessoas. No passado, nós de facto entendíamos a Igreja como uma instituição, às vezes um pouco estática, que estava constituída, posicionada nas diferentes regiões, paróquias e instituições. E, portanto, de algum modo, muito parada, podemos dizer. Tudo acontecia e tudo se passava porque havia um ritmo que hoje é a pandemia que cortou um conjunto de ritmos que nós tínhamos, mas também há outras motivações que ajudaram a interromper um conjunto de ritmos que vinham a ter a sua normalidade e naturalidade na vida da Igreja.

Hoje, a Igreja tem que ser dinâmica, tem que ser ativa, proactiva, tem que sair das suas próprias tranquilidades e tem que centrar-se em dois eixos fundamentais: em Deus, uma vez que é uma instituição que proclama uma fé em Deus por meio de Jesus Cristo; e tem de centrar-se muito nas pessoas, que não são incompatíveis estas duas dimensões, mas tem que centrar-se numa forma ativa, viva e provocadora, às vezes também quase provocatória e, por isso, tem de sair da sua instalação e das suas seguranças. Todos nós temos de sair dessa letargia que a pouco e pouco nos fomos acomodando.

Numa altura em que o presépio está em transformação, tal como o conceito de família, o que é essencial manter hoje em dia?

O essencial de Deus mantém-se tudo. Não há dúvida absolutamente nenhuma. Mantém-se Deus com a sua bondade, com a sua misericórdia e com a sua presença no meio de nós. Deus mantém-se. A escritura e a revelação diz: “Deus não muda. Deus é perene”. E nós, enfim, naturalmente vamos tendo formas diferentes de compreensão de muitas realidades. É evidente que algumas que estão tão enraizadas naquilo que é a pessoa e naquilo que é a sua própria identidade e a sua própria condição, não mudam pelo simples facto de haver uma pandemia, de haver mais dinheiro ou menos dinheiro. Nem todas as pessoas fazem o mesmo caminho interior, o mesmo caminho de inserção na sociedade e de inserção na Igreja. Hoje há um pensamento muito plural e, portanto, não há uma única forma de encarar as coisas. Agora, isto não significa que a Igreja enquanto portadora de uma fé e de uma boa-nova, não tenha uma especificidade de anúncio e que, portanto, por e simplesmente corra atrás das diferentes formas, perspetivas ou modas que se instalam mesmo do ponto de vista cultural em cada região e em cada tempo. A Igreja no seu caminho também de reflexão contínua, de escuta, de abertura a Deus, de reconhecimento da realidade, procura abrir-se e conhecer, mas sem se afastar daquilo que é a sua matriz e que pensa que era a matriz profundamente humana daquilo que nós somos enquanto pessoas e que está inscrita no mais íntimo de nós mesmos, e faz parte inclusivamente da revelação bíblica que a Igreja foi desenvolvendo ao longo da sua história.

D. Virgílio Antunes, Bispo de Coimbra