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O preço do sangue | Opinião


tags: Maria Alegria Marques Categorias: Opinião segunda, 17 janeiro 2022

Em tempos de balanço de mais um ano que passa, há acontecimentos que, sobremaneira, chocaram a sociedade portuguesa. Foram muitos, é certo, mas escolhemos dois, paradigmáticos, pelas reflexões que permitem. São eles o chamado “caso Ilhor” e o “caso do acidente do carro do Ministro Cabrita”.

O primeiro conheceu este ano o seu desfecho. Trata-se do triste acontecimento que foi o assassinato do cidadão ucraniano Ihor Homeniuk, em 12 de Março de 2020, num acto que teve a intervenção de membros de um serviço do Estado Português, o Serviço de Estrangeiros e Fronteiras (SEF). Em 21 de Janeiro de 2021, o SEF pagava uma indemnização de 712.950 Euros aos herdeiros desse cidadão, segundo ordem do Ministro da Administração Interna, Eduardo Cabrita, tutelar daquele Serviço, e após aprovação para o efeito pela Resolução do Conselho de Ministros, de 14 de Dezembro. O valor foi previamente arbitrado pela Provedoria de Justiça.

De mal o menos, dir-se-á, pois nada paga uma vida humana, e, então, esta, sucumbida num acto de pura barbárie, que nos envergonha como comunidade. Valor que um digníssimo Procurador da República, representante do Estado Português no processo, haveria de considerar exorbitante, quando afirmou “Quanto à indemnização, se o Estado português tiver de dar tanto dinheiro por uma indemnização vai à falência em pouco tempo.”

Todo este processo nos leva ao segundo caso, o do acidente do carro do Ministro Cabrita, em 18 de Junho deste ano, na A6. Creio que poucos portugueses desconhecerão este caso, tão falado ele tem sido. Sem desfecho à vista, com o Ministro sempre a furtar-se a explicações, muito mais a responsabilidades e Eduardo Cabrita (pois era ele o Ministro), já fora de funções, o certo é que a família da vítima, viúva e duas filhas, estão com um mísero subsídio da Segurança Social, a viver da solidariedade alheia. Ambos os casos nos fazem recordar e reflectir sobre acontecimentos ligados ao mesmo Ministério, nem sempre ao mesmo Ministro, todavia, mas à mesma cor política.

No rescaldo dos grandes incêndios que assolaram o País em 2017, o Estado Português estabeleceu, através da Provedoria de Justiça, (e pagou), um mínimo de 150 mil euros, aos herdeiros de cada vítima mortal, 80 mil pagos pela perda da vida e 70 mil pelo sofrimento dos familiares, pois que se poderia ainda juntar um valor entre 40 mil e 10 mil euros por danos não patrimoniais, consoante o grau de parentesco mais ou menos afastado entre os herdeiros e os indivíduos falecidos. No total, cerca de 190 ou 160 mil Euros, por cada morte.

Já quanto aos bombeiros falecidos em incêndios, segundo informações da comunicação social escrita, rondam a centena de milhar de euros, a pagar pelas Seguradoras.

Temos, assim, um leque alargado de valores para um mesmo facto: a perda da vida em acidente na ou pela coisa publica, sendo certo que, nos primeiros casos, até foram apontados responsáveis pelo acto (embora em situações diversas, a primeira julgada, a segunda, a aguardar julgamento), enquanto nos restantes, muito embora também os possa haver, há uma margem muito grande de responsabilização dos poderes públicos, por incúria ou omissão.

Sem questionarmos, uma vez que seja, a justiça no caso Ihor Homeniuk, e a perplexidade que nos causa o caso do acidente do carro do Ministro, não nos deixamos de interrogar – como, por certo, muitos o farão – sobre a justiça relativa de todos estes processos. E não deixaremos de ter que concluir que, apesar de todos os esforços, de todos os avanços em matéria de direitos, há sempre alguns (com) mais que os outros. E fica muito longe da prática a tão apregoada igualdade.

Bem pelo contrário, o sangue de um foi bem mais valorizado que o de tantos que morreram só por estarem em Portugal, em local errado, à hora errada. Então, vem-nos ao espírito o verso de António Nobre, escrito em 1892: “Que desgraça ter nascido em Portugal!”. Para alguns, claro. Os que trabalham e se esforçam para que nos gabinetes do poder, em Lisboa, não faltem o conforto e as mordomias, como já escrevia, em 1853, o insuspeito Alexandre Herculano, a propósito da expolição dos mais fracos pelo Estado. É bom estar atento, lembrar e reflectir.

Maria Alegria Marques