Diretor: 
João Pega
Periodicidade: 
Diária

''Difícil é a reconciliação…'' | Opinião


tags: Padre Rodolfo Leite Categorias: Opinião quinta, 07 abril 2022

O Padre Ernesto chegou à Diocese de Coimbra há dois anos, vindo de Benguela. Além de vir para colaborar no serviço pastoral, veio também para ser acompanhado, na sua pouca saúde, por serviços médicos mais capazes e competentes. Fazia diálise e vivia na esperança de um transplante. Foi sempre um batalhador, sereno e sofrido, tendo como alicerce uma fé inabalável. Ultimamente, estava a prestar serviço às Paróquias de São João do Campo e Vil de Matos, colaborando com o Pároco de Ançã. No entanto, o seu estado de saúde foi piorando de forma galopante. Por muito apoio que recebesse das pessoas que o rodeavam, na comunidade, necessitava de um outro acompanhamento médico, permanente e mais próximo.

A solução passou pelo acolhimento temporário que, generosamente, a Santa Casa da Misericórdia da Mealhada proporcionou, até que, passado uns dias, foi internado nos Cuidados Continuados da mesma instituição. Além do serviço dedicado dos profissionais e colaboradores daquela instituição que o Padre Ernesto foi recebendo, as religiosas da comunidade das Criaditas dos Pobres, na Mealhada, manifestaram-lhe uma ternura espiritual constante.

Tudo parecia correr bem, até que, há duas semanas, após uma consulta, foi internado. A situação agravara-se de novo. Por fim, faleceu domingo passado. Recordo-me bem da nossa última conversa. Falámos de muitas coisas e das suas preocupações. Além da sua saúde e da sua mãe e familiares que estão lá, preocupava-o a guerra na Ucrânia.

Emocionado, foi-me contando muitas coisas da sua experiência, durante os 27 anos, da guerra em Angola. Falou-me do terrível sofrimento de perder tudo, de fugir sem saber para onde, do medo angustiante, da tristeza e dor do ódio, da miséria e da fome, e tudo o resto que as armas sempre provocam. A certa altura, estando ambos a ver as imagens da televisão, sem som, disse-lhe:

- Padre Ernesto, olha aquela destruição…! Os anos que vai demorar reconstruirem tudo!

Ele, sorrindo levemente, contestou-me:
- O mais difícil não é reconstruir o que as bombas destroem. Difícil é a reconciliação. Isso é o mais importante, mas também o mais difícil!

Em silêncio, escutava-o com atenção. Ele continuou com uma voz convicta, embora frágil, por causa das suas poucas forças.

- A reconciliação só é possível quando o perdão do coração tem mais valor que os acordos de paz que se escrevem nos papéis. O perdão de coração só se aprende com Deus. Mas, as pessoas não querem saber de Deus, como se podem reconciliar-se?

As suas palavras impressionaram-me pela profundidade e pela verdade que possuíam. Percebi, entretanto, que estava cansado e despedi-me. Ele agradeceu, humildemente.

Quando soube do seu falecimento, recordei-me daquela conversa. Com efeito, o custa mais nas guerras é a reconciliação, pois só esta as vence. Sejam as guerras bélicas, sejam as guerras familiares, ou outras quaisquer. A paz não nasce de um pacto, ou acordo, por muito justo que seja, mas da reconciliação de coração, quando «ensopado» de um Amor maior que vem de Deus, e é capaz de perdoar. Mas, quando “a vida interior se fecha nos próprios interesses, deixa de haver espaço para os outros, já não entram os pobres, já não se ouve a voz de Deus, já não se goza da doce alegria do Seu amor, nem fervilha o entusiasmo de fazer o bem.” (EG 2), dizia o Papa Francisco.

Nestes dias antes da Páscoa, amarfanhados pelos acontecimentos da guerra e as suas consequências, que sejamos capazes de abrir o coração ao Amor com que Deus nos quer amar. Seremos, de certeza, artesãos da reconciliação em tantas situações do nosso viver.

Por fim, o testemunho de fé que o Padre Ernesto viveu, no sofrimento que o atingiu, foi mais uma página do Evangelho, viva e atual, onde Deus confirmou o amor que sempre e infinitamente nos tem. Descansa em Paz, caro colega.

Padre Rodolfo Leite