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''Evangelizar é o meu lema, trouxe-me alegria e foi libertador''


tags: Pampilhosa Categorias: Entrevista terça, 19 julho 2022

Luciano da Silva Nogueira, pampilhosense, com quase 82 anos, é o último sacerdote ordenado na paróquia da Pampilhosa e o penúltimo de todo o concelho da Mealhada. Comemorou meio século de ordenação no sábado, 2 de julho, na Igreja onde foi baptizado e onde há cinquenta anos celebrou a sua Missa Nova, na Pampilhosa. Nesse dia falou com o Jornal da Mealhada e fez um balanço da sua vida e do seu Serviço às comunidades e à Juventude Operária Católica que o despertou para a necessidade de entregar a sua vida ao testemunho de Cristo. 

 

O Padre Luciano Nogueira faz precisamente hoje, dia 2 de julho, 50 anos que foi ordenado sacerdote. Que memórias tem desse dia?

Tenho a memória de uma alegria espantosa, de uma experiência diferente, por toda a cerimónia, na Sé, especial e cheia de significado, desde o prostrar no chão, como sinal de entrega a Deus. É uma memória que me sensibiliza, que guardo como um dia muito feliz e muito importante para mim. 


 

Qual é o sentimento que tem, cinquenta anos depois de ter assumido esta vocação e este Serviço?

Tenho essa certeza, de facto, de que Jesus me chamou. Não obstante as dificuldades, as contrariedades, os nossos defeitos, o nosso pecado, tenho consciência que Deus me chamou. E que ser Padre é exatamente dar resposta a esse chamamento que não é uma coisa nossa ou minha. É estar ao Serviço e disponível para servir o Povo de Deus. Sobretudo, numa linha de evangelização, que foi isso que marcou a minha vida toda, desde o princípio. 


 

De que forma? 

A evangelização através da catequese para adultos, em pequenos grupos, onde as pessoas tinham possibilidade de partilhar, de pôr dúvidas, de esclarecer, de dizer não concordo, etc. Mas todos numa busca do Espírito Santo que ilumina e que indica um caminho comum. As opiniões diferentes não querem dizer que não sejam válidas, são todas válidas, umas mais do que outras. Mas crescemos quando partilhamos. Descobrimos e vamos por aí fora. 

A evangelização foi de facto o meu lema fundamental que sempre me animou, me deu muita alegria e muito trabalho. Acompanhar muitos grupos de catequese de adultos ao mesmo tempo foi muito bom, trouxe-me muita alegria e trabalho, mas foi libertador. 


 

Como pode ser libertador esse caminho?

Foi libertador porque vi as pessoas a encontrarem caminhos. Caminhos diferentes dos que estavam a trilhar. Foi libertador para eles e também para mim, porque eu caminhava com eles e eles comigo. E é bonito ver as pessoas a crescerem e a assumirem responsabilidades e a colocarem-se a caminho. Foi muito bom.


 

O Padre Luciano é natural da Pampilhosa…

Sim, nascido e criado cá até aos 30 anos. Depois fui para Coimbra. Os meus pais saíram daqui. O meu pai adoeceu e fomos para Coimbra. O meu pai era carteiro, andava nas ambulâncias dos comboios, a distribuir o correio. Era um serviço muito pesado e quando adoeceu foi colocado na estação dos correios em Coimbra e nós acompanhamo-lo.


 

Mas nessa altura já tinha sido ordenado?

Não. Fui ordenado depois, aos 32 anos. Entrei para o Seminário aos 24 anos. Já tinha o meu curso de eletrotécnica na Escola Avelar Brotero e já tinha a tropa feita. 


 

Portanto, no fundo, hoje dir-se-ia que foi uma vocação tardia…

Sim. Só aos 24 anos, depois da tropa feita é que decidi abraçar esta vida. Não fiz o Seminário Menor porque já tinha habilitações e, portanto, avancei logo para a Filosofia. Foram mais 8 anos de estudo e, aos 32 anos fui ordenado Sacerdote, em 1972, juntamente com outro colega que, infelizmente, já faleceu.


 

Durante a sua infância e juventude, sempre teve uma vida cristã?

Só a partir dos meus 14, 15 anos, quando eu entrei para a Juventude Estudantil Católica (JEC), aqui na Pampilhosa. A JEC foi fundada comigo e os grupos escolheram-me para ser o primeiro presidente da JEC da Pampilhosa. A Ação Católica tem culpa na minha vocação. 

Porque diz isso?  

Porque a Ação Católica tem um método muito importante, que é um método bíblico e muito interessante. Começa por ‘Aprender a Ver’. Olhar a sociedade e a nossa vida pessoal. Sabe que há muita gente que não sabe ver… Depois, ‘Analisar e Julgar’. Ou seja, racionalizar sobre o que estamos a ver, fazer uma análise crítica e uma busca de resposta. E depois, procurar a ‘Visão do Evangelho’. Que orientação o Evangelho e Jesus Cristo nos pode dar sobre o problema que temos em mão? Como vamos ao encontro da Palavra de Deus? E então, depois, temos de ‘Agir!’. E depois da ação, há a ‘Avaliação da Ação’, para corrigir. 


 

É uma metodologia muito definida, e progressista.

É, de facto, uma metodologia muito progressista. O Ver tem muito que se lhe diga. É preciso saber Ver, porque às vezes eu vejo a partir dos meus olhos, só. E há outros olhos que podem ajudar a clarificar o meu olhar. É preciso fazer a experiência de nos colocarmos no lugar do outro. 


 

E a metodologia da Ação Católica ajudou-o a Ver a sua vocação?

A minha descoberta de Jesus Cristo foi na JEC, através do Evangelho. Foi a minha coluna, o meu apoio em toda a ação. E Jesus Cristo é tudo para mim. Como é para todos nós que acreditamos. E foi aí que se começou a colocar-me o problema…


 

Sentiu o apelo?

Sim. 


 

Pode dizer-se que não foi condicionado por nenhuma circunstância?

Não foi uma atitude condicionada por nada nem por ninguém. Não nego que houve um carisma que me marcou, o da própria JOC. O Cardeal Josef-Léon Cardijn, fundador da JOC, belga, era um homem preocupado com os pobres, com os pequenos, com os marginalizados, com os que eram mais desprezados pela sociedade. E esse homem marcou-me muito. Depois, houve outros homens que me marcaram, nomeadamente o Senhor Padre Antoine Chevalier, francês, padre em Lyon, e que diz, com sabedoria, que só se converteu aos 46 anos. Porque aos 46 anos, já padre, teve a conversão autêntica, contemplando a miséria que havia nas suas paróquias, condoído com o sofrimento daquela gente. Diz ele que um dia, pelo Natal, contemplando o presépio, o Deus grande, rico, que se fez pobre, pequeno, pecado porque se tornou homem, sem ter pecado, se fez pecado, para nos ensinar que é possível o homem e a mulher serem diferentes. Jesus é o homem e a mulher que Deus quer que nós sejamos. Este é o mistério da encarnação. E estes testemunhos marcaram-me também. Foram, também para mim, uma confirmação daquilo que eu vivia. E isso às vezes faz-nos bem. Não por vaidade, mas porque temos necessidade de uma certa certeza. Sempre.


 

Aos 18 anos, na JOC teve esse sentimento. E depois?

Depois terminei o curso. E fui para a tropa. Num período muito difícil, em 1960/61. Depois da Tomada da Índia, quando a Guerra em Angola estava a começar e a alastrar-se no Ultramar. Foi nessa altura que eu fui para a tropa…


 

Mas não chegou a ser mobilizado.

Tive sorte. Eu e todos da minha companhia, nenhum foi mobilizado. Houve um que se ofereceu e que ficou na Guiné. Tive sorte… Não se falava nisso na altura, mas eu seria, na prática, um objetor de consciência. Para mim era impensável pegar numa arma e matar fosse quem fosse. O nosso Deus é o Deus da Vida, não é o Deus da morte. E ninguém tem direito sobre a vida do outro, não há razões que justifiquem matar. Há outros caminhos. 


 

Que memória tem desse tempo de tropa?

Foi um tempo rico… Mas foram três anos e três meses perdidos da minha juventude. Quer dizer… Não foi totalmente perdido. Porque fui igual a mim próprio na tropa. Fui como sempre fui. Continuei a rezar, a ir à missa, a defender os valores e as condutas que norteavam a minha vida. E tive muitos problemas com isso.


 

Como assim?

Os meus colegas pregavam-me partidas e maltratavam-me. E projetavam em mim dúvidas e inquietações que tinham. Um dia estava a preparar-me para ir fazer a ronda à cidade e um deles chega ao pé de mim, absolutamente raivoso, e grita-me: “Deus não existe!”. Eu acredito que nesse momento fui inspirado por Deus e respondi-lhe: “Se Deus não existe, porque estás tu incomodado e tão nervoso? Acalma-te!”. E fez-se um silêncio sepulcral. Nunca deixei de ser responsável, duro e consciencioso, sem deixar de ajudar e de ser solidário. 


 

No fundo, esses três anos e essa aprendizagem acabaram por, também, serem importante para a sua vida como sacerdote e pastor da comunidade?

Fortaleceu-me nas minhas convicções. Era um meio hostil para quem tinha convicções diferentes. E resistir, manter-me fiel ao que acreditava foi muito importante. Mas acabou por ser muito giro, porque mais tarde, quando alguns dos meus colegas de tropa souberam que tinha sido ordenado e era padre, chegaram a vir de Lisboa a Coimbra para eu os casar e batizar os filhos. Perceberam que era sério o que eu vivia. Compreenderam. E isso é compensador. 


 

O seu trabalho como padre foi sempre na Diocese de Coimbra ou esteve fora?

Também estive fora. Comecei por estar na Paróquia de Santa Cruz, em Coimbra, onde trabalhei quando era seminarista, como animador de grupos de jovens e de catequese.  Depois, fui para Soure com três colegas, vivemos numa comunidade onde estivemos durante seis anos. Ao fim desse tempo, fui para Cumeeira e Aguda, naquelas serras, duas comunidades muito difíceis de servir naquele tempo. Hoje é mais fácil. 

Depois dali fui estudar para Madrid. Fiz um ano sabático, para me preparar melhor. Entendi que devia estudar mais para ajudar o Povo. Não tive outra intenção: Apenas a de estar mais habilitado a ajudar o povo que me estava confiado. O Senhor Bispo na altura quis-me fazer Doutor e eu não quis. Nem quero: Eu não preciso ser Doutor, preciso é de estar preparado! Estive então um ano em Madrid e depois fui para Figueira de Lorvão, em 1991, onde acumulei também com Sazes de Lorvão. 

Seguidamente a Conferência Episcopal entendeu nomear-me como Assistente Nacional da Juventude Operária Católica (JOC), onde estive nove anos. E foram nove anos que estive fora da Diocese, praticamente. Andei por esse país fora a apoiar os grupos e a fazer a expansão com os grupos. Foi um trabalho bonito e compensador. 

Depois de três mandatos, regressei ao trabalho paroquial na Diocese de Coimbra. Ainda queriam que eu continuasse na JOC, mas eu entendi que já chegava, que era preciso gente mais jovem com outro dinamismo que eu já não era capaz. Já tinha sessenta e tal anos. A minha mãe, entretanto, ficou muito debilitada e eu pedi ao Senhor Bispo - foi a primeira vez que pedi alguma coisa - para não me mandar para muito longe, pois a minha mãe era a minha prioridade. 

Fui colocado na Pedrulha e em Trouxemil, onde estive 11 anos. Foram anos muito complicados e muito difíceis. Havia alguns problemas a resolver, que fiz questão de deixar resolvidos, sem os deixar para os outros - não tenho esse direito - e saí. Nessa altura coloquei-me ao serviço do Senhor Bispo e disponibilizei-me para ajudar os colegas que precisassem. O Padre Rodolfo Leite apanhou-me logo, e comecei a colaborar na Unidade Pastoral da Mealhada. 


 

Acabou, assim, por, indiretamente, regressar às suas origens, à Pampilhosa, e a esta região onde viveu durante tanto tempo…

Sim, e onde vivi até aos 30 anos. Eu vinha cá muitas vezes à JOC. Mas foi bom regressar à Pampilhosa, onde trabalhei muito quando era jovem. 


 

O Senhor Padre Luciano acaba por ser o último pampilhosense que foi ordenado padre na Pampilhosa e o penúltimo do concelho da Mealhada. Ordenação essa que faz hoje meio século. Que conclusão podemos tirar deste facto?

Eu creio que o problema está relacionado com a mudança que se deu na sociedade. Antigamente, os jovens não tinham outras solicitações, tinham que ser criativos e arranjar os seus divertimentos e as suas ocupações. Hoje é completamente diferente. As ofertas são muitas e muito variadas. E essa mudança é relevante. 

Por outro lado, também as famílias sofreram uma mudança significativa. Porque as nossas famílias, hoje e no geral, não têm vida cristã. E se não têm vida cristã, não podem dar testemunho. Esclareça-se que o meu pai e a minha mãe não tinham prática cristã. Não iam à missa. Mas nós íamos e os meus pais comunicaram-nos os valores humanos e educaram-nos. Antes de sermos cristãos, temos que perceber que somos Humanos. E que ser Humano nos obriga a respeitar as regras comuns para toda a gente, obrigados a ser Homem, a ser Mulher, a ter dignidade, etc. E isso é prévio à condição de cristão. O cristianismo vem dar um salto nisto tudo. Vem dar um sentido diferente à condição humana. Além dos humanos, há mais alguma coisa, que é Jesus Cristo e Deus. Viemos de Deus e a Deus havemos de voltar. E esta trajetória da vida, é a nossa trajetória, com uma missão muito concreta: tornar este mundo melhor. 


 

Que expetativas tem para a Jornada Mundial da Juventude que se vai realizar em Portugal em 2023? A vinda do Papa a Portugal pode trazer alguma esperança no sentido de podermos corrigir essa trajetória de afastamento dos jovens da vocação?

Sim, eu quero acreditar que sim. Mas tenho muitas dúvidas. Porque estes encontros já se fazem há muito tempo. E a questão é: Onde estão esses milhões de jovens que participaram ao longo dos anos? Este é o problema!

Penso que o que se está agora a fazer relativamente ao encontro mundial com o Papa Francisco, é de um trabalho bem diferente, que começa cedo, porque já estamos a trabalhar nisso há dois anos. Mas não tenhamos dúvidas de que o que vai ficar sempre é um pequeno grupo. O resto fica apenas sensibilizado. Não é para qualquer um, nem para todos o assumir de um compromisso de vida. Ainda mais na sociedade de hoje, que tem tanta solicitação, e é mais materialista.

E depois, por outro lado, o que mais me preocupa é que em geral, a juventude não tem objetivos. Não tem metas. Porque a própria sociedade também hoje não fornece segurança. Vemos isso no mundo laboral em que os jovens vão para fora, porque aqui são mal pagos, as carreiras não progridem e faltam estímulos que os mantenham cá. A nossa sociedade está envelhecida. E isso é um perigo. 

Em suma, acredito que possa, efetivamente, acontecer algo com a Jornada Mundial da Juventude no despertar de vocações, mas sempre numa minoria. Também temos de reconhecer: Jesus não mandou milhares a evangelizar, só mandou onze. E graças a eles nós estamos aqui dois mil anos depois. 


 

Portanto, não são precisos muitos, são necessários servidores que abracem a missão…

Exatamente. Que tenham o sacerdócio como um serviço, não como uma dignidade. Como um serviço ao Povo de Deus. Os padres não são mais importantes do que o Povo de Deus. Não. Fomos, simplesmente, arrancados do batismo para ter mais disponibilidade para ajudar o Povo de Deus a crescer. É só isso. A dignidade vem-nos do batismo, nem sequer vem da ordenação. É do batismo que resulta a missão de sacerdotes, para servir, de profetas, porque devem testemunhar o Evangelho, devem ser críticos e anunciar, e de reis, porque têm a obrigação de governar a igreja.

 

‘Nunca se cansem de fazer o Bem!’, exorta o Padre Luciano Nogueira na celebração das bodas de ouro sacerdotais

A Igreja Paroquial da Pampilhosa encheu-se para, na tarde de domingo, 3 de julho de 2022, se associar em Ação de Graças pelas Bodas de Ouro Sacerdotais do Padre Luciano da Silva Nogueira, o ultimo pampilhosense a tornar-se padre, há cinquenta anos, a 2 de julho de 1972. 

A celebração foi concelebrada pelo Vigário-geral da Diocese de Coimbra, o Padre Manuel Ferrão, em representação do Bispo de Coimbra. Para além da celebração, que teve como ideia chave do Evangelho do dia “A seara é grande, mas os trabalhadores são poucos”, foram muitos os grupos e entidades, de norte a sul do país, que se associaram à Ação de Graças pelo Serviço do Padre Luciano Nogueira, a quem entregaram lembranças e palavras de emoção e agradecimento.

O Padre Luciano Nogueira, no estilo bem-humorado que lhe é característico, não deixou de lembrar os seus pais, os seus colegas e as muitas pessoas que ao longo de cinquenta anos o acompanharam nesta caminhada. “Nunca se cansem de fazer o Bem”, declarou em forma de agradecimento, mas também de desafio a todos os que neste dia se juntaram na Pampilhosa.