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Uma vida dedicada aos direitos da Mulher


tags: Mealhada Categorias: Entrevista quarta, 24 abril 2024

Nasceu numa aldeia pertencente ao concelho de Cantanhede, em 1940, mas cedo veio viver para a Mealhada, hoje em dia reside em Coimbra. Com um espírito crítico, decidida, assertiva, mas acima de tudo com uma capacidade de se envolver e de conhecer o mundo que a rodeia, Maria Odete Isabel, falou com o Jornal da Mealhada e recordou um dos momentos mais marcantes da sua vida na Mealhada.

Foi a primeira Mulher, em 1976, a ser eleita presidente da Câmara da Mealhada, o que a orgulha e deixa com um sorriso enorme e brilho no olhar. Antes disso enveredou pela área de medicina na área de Farmácia Hospitalar.

Hoje em dia, com 84 anos, ainda se debate pelos direitos das mulheres, recorda a luta que travou enquanto Mulher para vencer num país que só os homens tinham direitos.

Porque veio viver para a Mealhada? Com que idade?

Juntamente com os meus pais e com a minha irmã, tinha eu cerca de 2 anos, fomos viver para a Mealhada, mais propriamente para a Póvoa, junto ao mercado, isto em 1942. Os meus pais trabalhavam imenso, para eles o trabalho era o princípio da dignificação humana, mas sempre foram muito felizes. Aliás, eu tive uma infância muito feliz.

Andou na escola primária na Mealhada?

Sim, na época havia o colégio Padre Breda e fui para lá estudar, embora com algumas reticências por parte do meu pai. A minha vida sofreu sempre uma forte influência feminina por parte da minha mãe e da minha professora da escola primária. A minha mãe tinha um desgosto enorme por não saber ler, e sempre me incentivou a aprender, já o meu pai queria que eu e a minha irmã ajudássemos no trabalho. A minha professora primária, amiga dos meus pais, fez um pacto com o meu pai enquanto eu não reprovasse ele não me tirava da escola, ele cumpriu. Não posso deixar de lembrar que nessa altura rapazes e raparigas tinham escolas separadas, algo que não me impedia de brincar com os rapazes, eu era rebelde e “maria rapaz”.

Brincar com os rapazes? Tendo em conta a época, como é que o seu pai via essas brincadeiras?

Mal. Aliás, um dia, na hora de almoço da escola, fui jogar futebol para o campo da Mealhada, com os rapazes (portanto, 10 rapazes e eu), o meu pai descobriu entrou pelo campo e bateu-me. Não deitei uma lágrima! Mal eu sabia que este momento iria revirar a minha vida.

Porque “revirou” a sua vida?

Muito preocupado com esta situação, o meu pai decidiu mandar-me para Famalicão para um colégio de freiras. Lembro-me que o meu pai estava muito triste e comentou com a minha mãe: “Nós não somos capazes de educar esta filha”, tem de ir para um colégio interno.

Como reagiu ao saber que ia para um colégio interno?

Era completamente incompatível com a minha vida. Eu gostava de liberdade, não de estar “presa”. Mas rápido tive de me adaptar. Comecei por perceber a vida e a rotina das irmãs, ou seja, já que tinha de viver ali, arranjei formas de me ajustar, acabei por completar lá o 7º ano. Analisei a rotina da irmã que saía para visitar os doentes, para a acompanhar. Numa das saídas fui ajudar uma senhora idosa doente, quando lhe peguei parecia que o corpo dela se ia desmanchar, interroguei a irmã que estava comigo, esclareceu-me que a doente tinha uma tuberculose óssea muito avançada. Neste momento pensei: “vou estudar medicina, quero curar doentes”.

Após essa decisão, como foi a sua vida daí em diante?

Obviamente que tive entraves, mas nada nem ninguém me demoveram. Portanto, em Coimbra fiz exame para entrada em Farmácia, correu muito bem. De seguida informei a minha mãe que sempre me apoiou, e também lhe disse que futuramente queria ser cirurgiã. Porém, havia um médico amigo da nossa família que quando soube o meu objetivo disse “os teus pais não têm dinheiro para pagar um curso destes, ainda por cima és mulher e as mulheres não têm mãos para operar”. Fiquei revoltada. Esse médico aconselhou-me a seguir pela área de Farmácia, e assim o fiz. Porém, avisei logo os meus pais que ia para esta área, mas para o Porto porque só lá iria obter o grau de licenciatura.

Ainda se lembra como foi a sua vida de estudante no Porto?

Sim, (responde com um enorme sorriso). Comecei por entrar para o Orfeão Universitário do Porto, isto em 1960, entrei para Juventude Universitária Católica e aí tive a felicidade de conhecer Maria de Lurdes Pintassilgo.

Conhecer Maria de Lurdes Pintassilgo teve influência na sua vida?

Sim, marcou-me muito. Era uma mulher de uma simplicidade extrema, com uma capacidade mental e um conhecimento enormes, para não falar que tinha uma cultura fora de série. Depois de ter travado conhecimento comigo ela disse-me: “vais ser uma lutadora contra a ditadura”. Ela deu-me linhas de orientação para a vida que nunca mais esqueço, tais como: a responsabilidade, assumir o que fazemos seja bom ou mau, olhar a nossa volta e ver o que podemos fazer para melhorar seja o que for. Acima de tudo dizia: “a humanidade é como uma ave, tem duas asas, uma é o homem e a outra a mulher enquanto as asas não estiverem igualmente desenvolvidas a humanidade não pode voar”. Assumi que esta era a base pela qual havia de lutar, pelos direitos das mulheres. Continuarei a lutar até que tenham direitos iguais. Revoltava-me imenso as leis da ditadura, as mulheres não tinham direitos, ficavam em casa nas lides domésticas, só os homens aprendiam a ler, isto era completamente repressor. Vivemos a ditadura mais prolongada da Europa, foram 48 anos, algo tinha de mudar. Então decidi que ia ser diferente, ia trilhar o meu próprio caminho enquanto Mulher.

Para além de ter conhecido Maria de Lurdes Pintassilgo, houve mais algum marco que queira partilhar?

(Risos) Sim! Um certo dia ia a descer as escadas da Universidade e um colega que já andava a fazer o curso, portanto, mais velho aproximou-se e disse: “Odete tu é que podias fazer parte da nossa organização. A PIDE”. Dei um grito nas escadas e disse “este colega pertence à PIDE”. Logo eu que era completamente contra as políticas de Salazar e contra a PIDE, aconteceu-me isto.

Foi exercer a sua área de licenciatura para Lisboa, passou pelos hospitais da zona Norte e mais tarde em Coimbra, em março 1974, entretanto rebenta o 25 de Abril. Onde estava nesse dia?

Eu conhecia o capitão de Abril, Manuel Bastos de Matos, que de vez em quando ia dando dicas do que iria acontecer. No 25 de abril de manhã ele ligou-me e contou-me o que tinha acontecido e disse-me para ir trabalhar. Um médico no hospital disse: “a liberdade está na rua”, acreditei e fui para a rua também.

Lembra-se do que sentiu nesse dia?

Felicidade, que dia luminoso e resplandecente. Foi a porta dourada para a segunda parte da minha vida que me dá um grande orgulho. Pensei logo na cidade que me viu crescer nos meus primeiros anos de vida, a Mealhada.

Candidatou-se a presidente da Câmara da Mealhada em 1976, como é que os seus pais reagiram?

A minha mãe como sempre apoiou-me. Já o meu pai disse que enquanto eu fosse presidente não me reconheceria como filha.

Manifestada a opinião do seu pai, teve dúvidas se haveria de prosseguir com a ideia?

Não! Ele nunca iria deixar de gostar de mim. Segui em frente, nada me iria demover. Realizei a campanha com o PS e ganhei!

12 de dezembro de 1976, o que significou este dia para si?

O dia de maior orgulho para mim, mas ao mesmo tempo de uma enorme responsabilidade, eu era a “Menina Presidente”. O Mário Soares apareceu no dia da minha nomeação e deu-me um ramo de cravos. Senti uma enorme alegria.

Enquanto liderava e no seu dia a dia sentiu na pele o preconceito de ser Mulher? Como lidou?

Senti o preconceito, lidei bem, como sempre em tudo na minha vida. Foi uma luta permanente, mas não quero pensar mais nisso.

Durante o seu mandato abriu três infantários, foi pioneira nesta área, como surgiu esta iniciativa?

Enquanto presidente da Mealhada marcava visitas para conhecer toda a região, foi a Barcouço e o que vi deixou-me horrorizada. Era época de vindimas e as mães enquanto trabalhavam tinham os bebés em pequenos cestos de vime na vinha. Nada daquilo fazia sentido para mim. Como sempre fiz na minha vida fui analisar o que tinha de fazer para conseguir infantários. Desde a levantamento do número de crianças existentes no concelho a pessoas que tomassem conta das crianças, procurei todos os meios necessários para dar melhores condições de vida às mães que trabalhavam e aos seus filhos. E consegui. Abri três infantários em casas pré-fabricadas, dos 3 aos 6 anos todas as crianças tinham ensino pré-primário.

Onde vai estar nas comemorações dos 50 anos 25 de Abril?

Com muito orgulho estarei na Mealhada, na ação solene!

Nestes 50 anos do 25 de Abril tenho de reconhecer todas mulheres que lutaram pela liberdade, todos os homens que sofreram e perderam a vida na guerra colonial e que aqueles que tiveram represálias só porque discordavam.