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Artigo de Opinião: "Aristides de Sousa Mendes – O Herói Inusitado"


sexta, 26 abril 2024

No dia 06 de abril de 2014, realizou-se um cordão humano à volta da Casa do Passal, então num estado avançado de ruína. Mais de 2000 pessoas de todo o mundo deram as mãos com o objetivo de sensibilizar as diversas entidades para a necessidade urgente de recuperação do edifício. No mesmo dia, a Direção Regional da Cultura do Centro anunciou o início da empreitada de requalificação da primeira fase da Casa do Passal e que começou no final do mês de maio. Após sofrer intervenção nas paredes e cobertura, está, desde 2022, a ser requalificada para a sua musealização. A Casa do Passal situa-se em Cabanas de Viriato - Carregal do Sal e muitas pessoas nem saberão que nasceu e viveu nessa Casa, tão perto de nós, aquele que considero o maior herói do século 20. No próximo dia 19 de julho, abre portas para receber todos aqueles que quiserem visitar o museu Aristides de Sousa Mendes e aprender mais sobre solidariedade e resistência, duas palavras que qualificam tão bem o ser humano excecional que protagonizou o que é considerado a maior ação de salvamento empreendida por uma só pessoa durante a Segunda Guerra.

 

Junho de 1940 é o mês decisivo. As tropas nazis cercam Paris. O consulado Português de Bordéus é igualmente cercado, mas por gente desesperada em busca de um caminho de salvação. Ainda em junho de 1940, de 17 a 19, o cônsul Aristides de Sousa Mendes trabalhou afincadamente, com ajuda dos filhos, na emissão de vistos. Estava, assim, a contrariar ordens diretas do chefe de estado, António de Oliveira Salazar.

 

Aristides de Sousa Mendes do Amaral Abranches, nasceu a 19 de julho de 1885 e faleceu a 3 de abril de 1954. Enquanto Cônsul de Portugal em Bordéus, no ano da invasão de França pela Alemanha Nazi, desafiou ordens expressas e durante três dias e três noites emitiu, à revelia do governo português e sem burocracia, vistos para Portugal a milhares refugiados, muitos dos quais judeus, que fugiam da Alemanha, e dos países já ocupados pelos exércitos alemães, livrando-os dos terríficos fornos nazis. “E assim declaro que darei, sem encargos, um visto a quem quer que o peça. O meu desejo é estar mais com Deus contra o Homem do que com o Homem e contra Deus”, disse Aristides de Sousa Mendes, 1940.

Foi um homem excecional, que não cedeu ao medo e foi capaz de dizer não, quando a maioria obedecia e até convivia amigavelmente com aqueles que lhes davam as ordens, mesmo tratando-se de ordens para matar outros seres humanos. Como explicou Hannah Arendt, não é preciso ser um monstro para ser cúmplice activo da maldade extrema. Basta cumprir ordens e fazer o que é pedido. Sousa Mendes desobedeceu e estima-se que salvou à volta de trinta mil pessoas, numa altura de maior risco, em que tudo levava a crer que a Alemanha iria ganhar a Guerra (corria o ano de 1940). Ao Cônsul eram reconhecidas posturas altruístas desde o tempo em que frequentou o curso de direito em Coimbra, mas era um homem dedicado à carreira e à educação dos seus 14 filhos. Não era um ativista na oposição ao regime ou no apoio à causa democrática. É o que podemos considerar um herói inusitado, por isso mesmo o seu exemplo é mais grandioso.

O acto heroico e altruísta valeu-lhe o afastamento da carreira diplomática e a aposentação compulsiva, mas com a reforma penhorada, o ex-Cônsul e a família passavam necessidades. Para além disso, perdeu o direito de exercer a profissão de advogado e passou os últimos anos da sua vida na miséria e sem a esposa e filhos que tiveram de procurar apoio fora do país. Foi obrigado a vender tudo o que tinha para pagar dívidas. Faleceu em Lisboa e o estado de Sousa Mendes, um aristocrata outrora habituado a luxos, era tão miserável, que foi enterrado com roupa cedida por caridade.

Castigado pelos seus atos de rebelião, nunca lhe foi reconhecida a bondade dos seus atos em vida. O primeiro reconhecimento veio 12 anos após a sua morte, quando, em 1966, no memorial do Holocausto em Jerusalém, Yad Vashem lhe prestou homenagem e lhe atribuiu o título de “Justo Entre as Nações”. Recuperar a sua casa – Casa do Passal em Cabanas de Viriato e a sua musealização –  é valorizar na nossa memória coletiva a grandiosidade de alguém que praticou o bem pelo bem e foi severamente castigado por tê-lo feito (o bem). E não que compense todo o sofrimento em que viveu pelos outros, mas que, pelo menos, se dignifique na morte o que não foi feito em vida e possa servir como prevenção no futuro. E isso é engrandecer-nos como povo.

Marília Alves