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Ler é perigoso


tags: William Bigorna Categorias: Opinião sexta, 23 maio 2025

Passam hoje trezentos e trinta e nove (339) anos sobre o nascimento de Gabriel Daniel Fahrenheit, nascido em Gdansk. Físico, inventor do termómetro e da escala termométrica de Fahrenheit viria a falecer a 16 de setembro de 1736.

À parte o seu interesse e os contributos para o mundo científico, o seu nome ressalta para a ribalta das minhas preocupações pois, há quatro dias, mais precisamente no dia 10 do corrente mês, mas correndo o ano de 1933, se assinalar a data que ficaria conhecida pelo nome “Queima de livros na Alemanha Nazi”, que teve lugar na praça da Ópera, em Berlim, transcorrida entre os dias 10 de maio e 21 de junho.

Poucos meses após a chegada ao poder de Adolf Hitler teve início uma campanha organizada pelas fraternidades estudantis. Foram queimadas centenas de milhares de livros em praças públicas em várias cidades alemãs, com a presença da polícia, bombeiros e outras autoridades. Tudo o que se considerava como crítica/censura ao regime nazi ou se desviasse dos padrões impostos pelo governo vigente foi destruído.

Quem diria?! A relação deste evento, as suas características com as ações de ingerência governamentais de Trump sobre as Universidades Americanas, que me assolou o pensamento, só pode ter sido mera coincidência.

Há ventos de mudança e os termómetros não enganam. As alterações climáticas também trazem desertificação cerebral.

Há nítida e despudoradamente um paradigma emergente que procura alterar os padrões de pensamento, mudar a semântica dos conceitos e a historicidade dos eventos.

As comemorações do 25 de Abril sufocadas por um “pseudo luto”, as festividades do 1º de Maio trasladadas para o palácio de S. Bento e travestidas numa espécie de festa em família (os mais jovens que perguntem aos mais velhos, lá em casa). Um discurso onde já não se esconde o “deixem-me trabalhar”, onde os trabalhadores foram mortos - numa cosmética lexical sem vergonha - para darem lugar a colaboradores mornos, zombies, disponíveis, servis e sem direitos.

 Toda uma toalha de sombras que se lança sobre factos históricos vergonhosos como o Holocausto, as ações de tortura da Polícia Política (PIDE), ou a ditadura brasileira. Tudo é negado, falseado, sem verdade e sem pudor.

Há em curso a criação de uma ciência que tem como fim a morte das ideologias e a sepultura da Liberdade e dos Direitos Humanos.

Com o aniversário, hoje, de Fahrenheit, vem-me à memória o título de um filme que, apenas por coincidência, me poderia flambear as ideias. Trata-se de “Fahrenheit 451”. 

A temperatura a que ardem os livros, referida no romance "Fahrenheit 451", de Ray Bradbury, é de 451 graus Fahrenheit (232,22 graus Celsius). Essa é temperatura a que o papel do livro se incendeia e se consome.

O romance descreve um futuro em que os livros são proibidos e os bombeiros são chamados para queimar os que ainda existem.

A memória transporta-me para a história e para o incêndio da Biblioteca de Alexandria (talvez acidental, ou não), e o calor acorda-me os “à l'arme”, levando-me também para o regulamento da Biblioteca das bibliotecas, onde se proíbe o uso de chama, de forma preventiva. Dirige-me, similarmente, para a inscrição na Biblioteca do Colégio de S. Pedro, em Coimbra: “Preterea etiam precipimus quod nullus lucernam vel candelam in bibliotecam intromitat” (Preceituamos também, além disso, que ninguém introduza na biblioteca qualquer lâmpada de azeite ou vela). Não vá o diabo lembrar-se…

Os livros podem conter ideias concorrentes ou disruptivas com as minhas, com as tuas, com as nossas. Queimar os livros significa queimar as ideias que podes ter, que te achas livre de possuir.

Os livros não impõem ideias, mas o exercício da leitura adestra o cérebro para que possas definir quais as que queres seguir. Para os ditadores, os livros serão sempre perigosos. Dentro de um cérebro livre habita a liberdade e os ditadores odeiam gente livre.

Hoje não é necessário queimar os livros. Dentro do mesmo paradigma que avança como uma marcha silenciosa e traz um passado sombrio foram criados hábitos, estratégias, estratagemas e artífices que dispensam a queima dos livros. Eles podem “dormir” descansados, nos escaparates, nas estantes das bibliotecas e até nos suportes digitais, que ninguém os incomoda.

Os neurónios estão a ser queimados a baixas temperaturas, talvez sem exceder os 100,4 Fahrenheit.