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“Quanto mais pequenos, mais Deus nos ajuda!”


tags: Padre Rodolfo Leite, Opinião, Opinião, Opinião Categorias: Opinião quarta, 20 fevereiro 2019

Estava em casa e assustei-me ao ouvir alguém bater à porta com força. Abri e era uma senhora. Tinha um aspeto pouco agradável, de baixa estatura, vestida de forma desajeitada e com o cabelo todo despenteado.

- Bom dia! É o senhor o Padre?

Respondi-lhe que sim e perguntei-lhe o que desejava.

- Vou para Coimbra, mas não tenho dinheiro que chegue para o comboio. A minha vida é lá na aldeia e há coisas a que não estou habituada. Até pensei que poderia ir a pé da Mealhada até Coimbra, pois diziam que era perto, mas afinal fica ainda longe. Depois não trouxe dinheiro que chegasse. É tudo tão caro e tão confuso.

Apercebi-me que as suas palavras eram verdadeiras. Saiu cedo da sua aldeia, para cima de Aveiro, para vir até Coimbra. Os anos já lhe pesam e notei que o seu olhar expressava insegurança e preocupação, por estar transtornada com tais lides.

- Queria visitar um vizinho meu que está internado, já desde do Natal. Ele é como eu, não tem ninguém. Olhe, ainda é novo e boa pessoa, só a «pinguita» é que dá cabo dele. Lá na terra ninguém quer saber dele e se a gente pergunta alguma coisa, lá no Lar, ainda respondem mal.

Entretanto, convidei-a a entrar, pois estava frio. Ela aceitou e, sem mais, sentou-se numa cadeira. Começou, então, a dar-me explicações, com muitos detalhes, sobre a sua vida, sobre o vizinho que queria ir visitar e sobre a aventura em que se tinha metido naquele dia.

Não demorei muito para perceber que era crente e que é a fé que lhe dá «razões para viver», apesar da pobreza e da miséria com que vai lidando todos os dias.

Como eu ia para Coimbra, passado um bocado, ofereci-lhe boleia. Ela, emocionada, aceitou. Na viagem nunca deixou de falar, partilhando sempre as dores e os desamores da sua vida, assim como a força de Deus que a vai mantendo de pé.

Deixei-a à porta do Hospital. Pedi a uma auxiliar das enfermarias que ia passar, naquele momento, para a orientar. Antes, já lhe tinha explicado tudo ao pormenor, onde comer, como regressar até à estação e depois era só entrar no comboio. Dei-lhe o dinheiro necessário para tudo. Ao sair do carro, despedindo-me, brinquei com ela:

- Olhe, tenha cuidado. Assim tão pequenita, ainda se perde!

Ela sorriu e respondeu-me.

- Quanto mais pequenos nós somos, mais Deus nos ajuda, senhor Padre. Obrigado por tudo. Deus lhe pague.

Mais tarde, ao deitar-me, recordei aquela mulher. Comecei a pensar se teria conseguido chegar a casa. Se teria comido e seguido todas as orientações que lhe tinha dado. Depois, veio-me à mente a última afirmação dela. Que fé aquela mulher tinha!? Uma fé que não fica refém de ideias e teorias, nem se deixa enredar pelas «manhas» dos «ditadores de opinião» que dominam as manchetes da imprensa diária e a abertura dos telejornais. Sim! Uma fé que experimenta bem a grandeza do amor de Deus, apesar da pequenez da condição humana.

Encantou-me, também, a sua humanidade. Perante uma vítima da «cultura do descarte e da indiferença» – o seu vizinho –, aquela mulher é protagonista da «cultura do dom», como gosta de dizer o Papa Francisco. Arrisca, sem mais, em ir ao encontro de forma desinteressada, para levar, com amizade, a esperança que só se transmite com um coração bondoso. Não tinha que chegasse para ela, mas não importava! A sua missão era fazer-se presente junto do vizinho que para todos os outros era como que «ausente». No caminho ficou assustada e confusa, mas o sentido era claro: estar com quem foi esquecido nessa cumplicidade à qual nós, cristãos, chamamos misericórdia.

Hoje, como nunca, em tudo e para tudo se reclama profissionalismo, competência, eficácia… É pena que tal não seja aliado à ternura, à bondade, à partilha, às expressões de gratuidade, à amizade que brota do coração humano. Aliás, andam por aí muitas «causas solidárias» que não servem mais do que consolar quem as faz e pouco significam para quem se dirigem, pois estão carentes da fé e da humanidade que aquela mulher, mesmo pequenita, vive.