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Conversámos com Paulo Coelho, a propósito do Dia Internacional da Epilepsia


Categorias: Região segunda, 20 fevereiro 2017

Celebrou-se, a 13 de Fevereiro de 2017, por todo o mundo, o Dia Internacional da Epilepsia.

Este tipo de efeméride serve para homenagear os doentes, no caso os doentes com epilepsia, mas sobretudo para lembrar a doença, as dificuldades por que passam os doentes, e sensibilizar todos para a importância de dedicar esforços e recursos para o tratamento destas pessoas.

No fundo este dia serve para colocar os problemas das pessoas com epilepsia como uma prioridade de todos e, consequentemente, dos nossos governantes. Mas é também uma oportunidade excelente de transmitir alguma informação sobre a Epilepsia, o que ajuda a conseguir o objetivo de tornar esta doença relevante para todos. Assim, à frente, serão respondidas algumas dúvidas sobre a epilepsia e temas associados, por Paulo Coelho, médico neurologista no Hospital Misericórdia da Mealhada.

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Jornal da Mealhada (JM) - O que é a Epilepsia?

Paulo Coelho (PC) - A Epilepsia é uma perturbação cerebral, em que existe uma predisposição mantida para ocorrerem crises epiléticas.

É uma perturbação ou doença biológica, dependente de uma alteração no cérebro, mas além disso apresenta vários contextos associados: por exemplo (1) um contexto psicológico (o medo de ter crises, que são sempre eventos inesperados, ou o medo de traumatismos associado a crises), (2) um contexto social (por exemplo o medo de ser marginalizado pela sociedade, as limitações à condução de veículos que interferem no dia-a-dia de alguns epiléticos, ou os problemas profissionais causados por ser epilético) e outras dimensões, como sendo (3) o contexto cognitivo, entre outros.

Esta definição um pouco teórica associa-se a uma definição mais prática em que uma pessoa com epilepsia é uma pessoa que (1) tem pelo menos 2 crises epiléticas não provocadas por nenhum fator agudo e transitório, separadas uma da outra pelo menos por 24 horas, ou (2) tem o diagnóstico dum síndrome epilético ou, (3) tem 1 crise epilética não provocada e tem um risco de pelo menos 60% de ter uma nova crise não provocada nos 10 anos seguintes.

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JM - O que são crises epiléticas?

PC - Uma crise epilética é uma alteração do comportamento normal, em que se pode observar um conjunto de sinais e sintomas devidos a atividade excessiva e anormal dos neurónios. Podem-se observar por exemplo alterações motoras, como sendo posturas anómalas, ou movimentos anormais simples como as clonias (movimentos rítmicos) ou complexos como os automatismos (como por exemplo a mastigação); o doente pode apresentar alteração do estado de consciência (não conseguir interagir com as pessoas presentes, ou não ter memória do que se passou durante a crise), pode referir alterações psíquicas (como sendo a sensação de déjà-vu e o medo) ou alterações sensitivas (como sendo parestesias, habitualmente conhecidos como “formigueiros”), entre outras.

Na linguagem corrente expressões como convulsões ou “estrebuchar” designam crises epiléticas.

Longe vai o tempo em que uma crise epilética era considerada possessão demoníaca, feitiçaria ou um transe sobrenatural.

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JM - A epilepsia é frequente? Quem tem epilepsia?

PC - Em Portugal estima-se que a cada ano existam cerca de 30 novos casos de epilepsia por 100 mil habitantes, existindo, ao todo, cerca de 4-5 epiléticos por cada mil habitantes.

Os novos casos surgem mais frequentemente em pessoas nos primeiros anos de vida e em pessoas com idade superior a 50-60 anos.

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JM - O que provoca a epilepsia?

PC - A epilepsia pode ter várias causas. Pode ter causas (1) predominantemente genéticas ou presumivelmente genéticas, que se julga resultarem da interação complexa de vários genes em que não se observam lesões estruturais no cérebro (como por exemplo as epilepsias “idiopáticas” da infância), ou (2) ter causa em lesões estruturais do cérebro (como por exemplo a epilepsia relacionada com as displasias corticais, a epilepsia secundária, a traumatismos crânio-encefálicos, tumores cerebrais, ou após acidente vascular cerebral – AVC), podem ser secundárias a doenças (3) metabólicas (epilepsia associada a erros do metabolismo) (4) doenças imunológicas (como por exemplo as encefalites autoimunes) ou (5) infeciosas (como por exemplo as encefalites por tuberculose, HIV, neurocistecercose, entre outras). Finalmente, há ainda (6) as epilepsias cuja causa não se consegue identificar, após um estudo extenso, que se chamam as epilepsias de causa desconhecida.

Assim, é fácil compreender que não existe “uma epilepsia”, igual ou semelhante para todas as pessoas, mas sim um grande conjunto de entidades, com evolução e resultados diferentes.

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JM - As crises epiléticas são todas iguais?

PC - Não, há vários tipos de crises. Dividem-se globalmente em crises generalizadas (que rapidamente desde o início envolvem várias redes neuronais bilateralmente por ambos os hemisférios cerebrais) e crises focais (que têm um início numa rede focalizada a um hemisfério cerebral). As crises generalizadas dividem-se ainda em motoras e ausências (conforme os sintomas sejam predominantemente motores ou caracterizados pela paragem de comportamento) e as crises focais dividem-se em motoras ou não motoras (conforme o componente principal seja motor ou em alternativa sensitivo, cognitivo, emocional ou autonómico).

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JM - Como se faz o diagnóstico?

PC - Antes de tudo é necessário diagnosticar uma crise epilética. Nem sempre é uma tarefa, simples uma vez que as crises epiléticas podem-se confundir e ser confundidas com outros eventos clínicos como sendo síncopes “desmaios”, perturbações de sono (por exemplo terrores noturnos e sonambulismo, entre outros), ou doenças neurológicas mais raras como sendo a amnésia global transitória, alterações psiquiátricas e outros movimentos anómalos, geralmente também de causa neurológica. Geralmente as crises e estes outros eventos não são visualizadas pelo médico, mas sim relatadas pelo doente e por testemunhas, o que torna o seu diagnóstico preciso algumas vezes complexo.

Após o diagnóstico de uma crise epilética é necessário fazer o diagnóstico de epilepsia. Para isso, é necessário excluir fatores agudos e transitórios que podem provocar crises, e que, quando resolvidos, não constituem uma predisposição mantida para ocorrerem crises, como por exemplo algumas doenças agudas, como sendo a insuficiência renal aguda com a elevação marcada da creatinina no sangue, ou como por exemplo alterações agudas e marcadas da glicose no sangue (tanto glicose baixa bem como a glicose elevada, eventos que podem acontecer em doentes diabéticos). Ambos os eventos podem provocar crises e, quando corrigidos, deixam de manter o risco de novas crises.

Para confirmar a predisposição mantida para ocorrerem crises epiléticas, o médico procura identificar sinais e sintomas de doenças neurológicas, e serve-se de exames complementares de diagnósticos como sendo o eletroencefalograma (o exame fulcral nesta doença) que regista no escalpe, a atividade elétrica cerebral, e os exames de imagem, especificamente a ressonância magnética cerebral, que identifica lesões cerebrais estruturais que possam constituir eventualmente focos epiléticos. Ainda outros exames podem ser utilizados, ainda que mais raramente, como por exemplo alguns exames analíticos de sangue e de LCR (o fluído que banha o cérebro, colhido na região da coluna lombar).

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JM - Como se trata a maioria das pessoas com epilepsia?

PC - A forma principal de tratar a epilepsia é farmacológica. Os fármacos antiepiléticos, apesar de não tratarem de forma definitiva a epilepsia, reduzem significativamente o risco de ter crises enquanto tomados, de forma que o doente com epilepsia possa ter uma vida sem crises. Isto acontece em cerca de dois terços dos doentes com epilepsia. Um fármaco utilizado isoladamente ou associações de fármacos permitem à grande maioria de doentes viver livre de crises. E atualmente existem dezenas de fármacos disponíveis, com mecanismos de ação diferentes e perfis de tolerabilidade bastante bons que permitem o tratamento com sucesso da pessoa com epilepsia, tanto no geral, como em situações particulares como sendo a mulher em idade fértil, a pessoa polimedicada e a pessoa idosa.

Tratamento com sucesso não implica que não seja complexo e exige sempre uma excelente relação clínica entre o médico e o doente, de forma a rapidamente perceber problemas a resolver e manter uma elevada adesão aos tratamentos propostos.

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JM - E para os que continuam com crises apesar de tratamento farmacológico?

PC - Para estes doentes, particularmente os doentes com epilepsia focal, há a possibilidade de tentar remover cirurgicamente a zona epileptógena (a região de cérebro responsável pela génese das crises e que mantém a predisposição para ter crises e que teoricamente, se removida completamente, termina a recorrência de crises).

Esta forma de tratamento, a cirurgia da epilepsia, tem como objetivo aumentar o número de doentes controlados, sem crises (não é, portanto, um substituo à medicação farmacológica). É extremamente complexa, e por isso feita em centros de referência, em Portugal no Porto, Coimbra e Lisboa, em que uma equipa multidisciplinar realiza os exames e avaliações necessárias para estabelecer com segurança a zona epileptogénea e determina se o doente tem benefício previsível em ser operado e se isso pode ser feito com segurança. Apesar de os doentes refratários à terapêutica farmacológica deverem ser apresentados com prontidão a estes centros, isto não significa que todos sejam operados.

Contudo, mesmo para os doentes em que não se identifique uma solução curativa, existem ainda cirurgias paliativas que tentam diminuir o número e o impacto das crises epiléticas. É um tratamento muito relevante para o cerca de um terço de doentes que não fica controlado medicamente e estes devem ser referidos com brevidade após o médico identificar a refratariadade da epilepsia aos fármacos antiepiléticos.

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JM - Epilepsia é só ter crises?

PC - Não! A pessoa com epilepsia tem vários outros aspetos relevantes que não podem ser ignorados. Alterações psiquiátricas, psicológicas, sociais, que têm que ser abordadas na consulta de Epilepsia.

Particularmente relevantes são as questões sociais, nomeadamente algum estigma (atualmente) incompreensível da sociedade a esta doença e até dificuldades destas pessoas em conseguirem um emprego estável e duradouro. Felizmente, para a maioria das pessoas, a Epilepsia é uma doença banal e simples, que não transtorna o dia-a-dia, mas para alguns ainda é motivo de sofrimento, infelicidade e marginalização. É por isso que existe o Dia Internacional da Epilepsia, e é por isso que estão a ler este texto! Porque esse aspeto negativo tem (mesmo) que mudar!

Para acabar, sugiro a todos a consulta do site www.epilepsia.pt para mais informações relevantes e rigorosas sobre epilepsia. O saber não ocupa lugar e conhecer esta doença é dar força e voz às pessoas que dela sofrem.